Freud explicado
terça-feira, 16 de novembro de 2010
Encontro sobre a obra de Freud
Na sexta 26, uma palestra servirá como ponto de partida para todos os debates do seminário, que reúne psicanalistas de várias partes do Brasil.
O palestrante é Abram Josek Eksterman (SBP-RJ), analista didata e psiquiatra que trabalha no bairro carioca de Ipanema (leia seu artigo O psicanalista no hospital geral, de 1980). Neste encontro, ele falará sobre o tema "Evoluções e Mudanças Teóricas e Técnicas na Obra de Freud".
No sábado pela manhã, quatro grupos paralelos terão trios de discussão: dois debatedores analisarão suas ideias sobre o tema geral, e um fará a síntese dos anteriores.
Após uma plenária, o encontro deverá terminar às 13h, prometendo deixar com gosto de "quero mais". Alguns psicanalistas vêm do Rio, São Paulo e Minas Gerais e não quererão parar o debate tão rápido.
Leia uma entrevista com o doutor Eksterman (acima, fotografia do Centro de Medicina Psicossomática da Santa Casa do RJ).
quinta-feira, 7 de outubro de 2010
Jornada sobre tradução de obras de Freud
Informações: (51) 3222 3900, cepdepa@cepdepa.com.br, ou Rua Tobias da Silva 287 (Moinhos de Vento, Porto Alegre).
sábado, 18 de setembro de 2010
Novo filme de época sobre a Psicanálise
A trama mostra a relação (da amizade até a ruptura) entre Freud e Carl Jung, nas duas primeiras décadas do século XX. O ator norte-americano Viggo Mortensen representa Sigmund Freud (dir.; de barba) e o psiquiatra suíço é interpretado pelo alemão Michael Fassbender (dir.; de bigode).
A inglesa Keira Knightley (abaixo) viverá Sabina Spielrein, uma jovem russa - bela mas com graves alterações - que é levada para uma consulta com Jung em Zurique e se envolve amorosamente com o médico. Mais tarde, ela estuda psicanálise e a aplica à educação de crianças na Rússia.
A peça teatral The Talking Cure foi escrita pelo cineasta Christopher Hampton (em janeiro de 2003 foi encenada em Londres) e este ano o autor fez o roteiro para o cinema. Todo o relato se baseia em fatos e pessoas reais, situando-se na Áustria e na Suíça, nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial. As locações foram em Viena, Berlim, Zurique e Munique, e o filme tem estreia prevista para 2011.
O filme iria ter o mesmo nome da peça ("A cura pela fala"), mas foi modificado em abril de 2010 para um menos científico e mais comercial: "Um método perigoso". Muito parecido ao filme que fez Hampton famoso (Oscar 1989 à Melhor Adaptação de Roteiro): Ligações Perigosas (Dangerous Liaisons). O mesmo título teria servido a esta trama de conflitos entre médicos e pacientes.
segunda-feira, 26 de julho de 2010
Confessionário e divã: analogia técnica
Em seus estudos sobre religiões e culturas antigas, literatura e medicina, chega a parecer que Sigmund Freud emprestou ao confessionário e sua técnica uma importância invulgar, embora em qualquer de suas obras tenha eu visto ou tido notícia de que jamais tenha ele interligado uma coisa com a outra.
Mas Freud constatou que o crente, ao confessar seus pecados, encontrava um real alívio de seus conflitos eventuais. O método é atribuído a Freud, mas autores como Jones afirmam pertencer a Breuer.
O essencial dessa técnica seria a Catarse — que etimologicamente significa purgação, purificação, limpeza — ou, mais do que isto, seria o efeito salutar provocado pela conscientização de uma lembrança fortemente emocional e/ou traumatizante, até então reprimida.
Como certo, temos que um processo é secularmente antigo e o outro tem pouco mais de 100 anos. E nas minhas divagações imaginativas lembrei-me que o pano espesso e roxo que separa o confessando do confessor destina-se a não inibi-lo, antes de torná-lo apenas um desconhecido. Curiosamente, na técnica psicanalítica de Freud, a poltrona do médico fica, durante a sessão, às costas do analisando para desinibi-lo na sua Catarse ou “confissão”.
Em ambos os métodos quem procura o “desabafo” é sempre quem fala livremente o que lhe vier à cabeça (não estaria aí já a associação livre de ideias, tida como de Freud ou Breuer?).
O confessor e o analista, ambos em sua missão de aliviar as angústias do semelhante, só intervêm com observações altamente éticas e cada uma delas alicerçadas nos valores morais em que acreditam. Ambos com um desiderato altamente positivo.
Em verdade, trata-se de uma catarse a dois, pois sempre ambos — esta é a presunção — confessando e confessor, médico e paciente, atuam sob a égide do segredo, ora profissional ora de confessionário, cada qual altamente importante, pois capazes de reconstruírem um ser humano (ou também, com a mesma força, destruí-lo).
Observando as várias similitudes entre Freud, sua Psicanálise e o Confessionário, encontrei inclusive que ambos exigem basicamente uma “expiação” pelos “pecados”. O Confessionário impõe a penitência, em forma de várias orações, feitas em genuflexão, por vezes altamente cansativa e até mesmo dolorosa para os joelhos e a postura da coluna. Quanto à Psicanálise, a “expiação” se daria através dos honorários cobrados pelo Analista, geralmente compatíveis com a importância da cerimônia médica.
O curioso é que também, nas duas vertentes, se o ato “expiatório” não for realizado— é consenso — poucas serão as chances de que a paz seja reencontrada por quem a busca. Ficam estas especulações à apreciação dos amáveis leitores.
O cronista acerta em cheio, neste ousado paralelo entre ciência e religião. À base da proposta acima, que fica aqui como contribuição ao debate, ouso eu agora resumir as seguintes sete semelhanças e três diferenças (8-10) entre a confissão católica e a psicanalítica:
- A fala alivia a tensão, especialmente a dos sentimentos de culpa.
- O discurso associativo livre amplia a conscientização de lembranças.
- A intimidade e o segredo desinibem a expressão, obtendo mais revelações.
- Não olhar nos olhos do outro facilita a introspecção.
- Quem fala é ouvido totalmente, sem crítica nem obstáculos.
- Quem ouve não julga, mas faz observações éticas.
- Ambas técnicas enfatizam mais no sofrimento do que na reparação.
- A posição física busca: arrependimento (de joelhos) ou relaxamento (recostado).
- A frequência das sessões (anual ou diária) busca conservar ou transformar a transferência.
- A retribuição do paciente (penitências ou pagamento) vai à Igreja ou ao analista.
quarta-feira, 21 de julho de 2010
Villa Freud, bairro de consultórios
Como um eco ao nome popular dessa zona de Buenos Aires, existe ali o Café Sigi (ponto de encontro de analistas e de analisandos), a farmácia Villa Freud, a loja de roupas Narciso e o restaurante Freud & Fahler (a primeira dona era psicóloga e o batizou com o nome de seus dois amores; Fahler era seu marido). Outros nomes populares dessa zona são: Palermo Sensible (alusão psicológica), Guadalupe (pelo outro nome da praça Güemes, já chamada também de Plaza Freud) e Alto (pelo shopping Alto Palermo). Mas Villa Freud é o nome mais emblemático, tanto na Argentina como internacionalmente.
Tanto assim, que suscitou um artigo do Wall Street Journal sobre a febre psicologista dos argentinos (leia), e até mesmo um documentário para a TV canadense, em preparação desde 2008 (Villa Freud - a Psychoanalitical Tango), sobre as relações entre o tango e a psicoterapia em Buenos Aires. Veja abaixo, no fim desta nota, um vídeo de antecipação (ou o sítio do filme).
Nos 70 anos da morte de Freud (setembro de 2009), o jornalista argentino Ariel Palacios publicou um extenso artigo no Estadão (leia). Ele diz que certo deputado da capital quis batizar uma quadra da rua Medrano como "Calle Freud", onde está o Café Sigi (cardápio à esquerda, clique para ampliar). Freud, segundo o deputado, é um dos poucos nomes que não suscita antagonismos na Argentina, pelo menos para batizar ruas (costuma haver brigas entre grupos de opiniões contrárias).
A Argentina é o país que tem maior concentração de psicólogos, em todo o mundo (um por 650 habitantes, de acordo com a Wikipédia), superando Estados Unidos e países europeus. Os argentinos do interior tendem a pensar que essa forte concentração é mais típica da neurótica Buenos Aires e não tanto do país.
Segundo o artigo do Wall Street Journal , a OMS registra na Argentina 121 psicólogos por cem mil habitantes em 2005 (no Brasil e nos EUA, eram 31). Em 2008, já eram 145 psicoterapeutas por cem mil argentinos (em Buenos Aires, 789 por cem mil).
Certa pesquisa encontrou, em 2009, que 32% dos argentinos haviam consultado alguma vez um psicólogo (em 2006 eram 26%). É preciso notar que na Argentina não se faz muita diferença entre psicanalista, psicoterapeuta e psicólogo, até porque a psicanálise é a corrente hegemônica.
Muitos argentinos (diríamos, obsessivos) podem estar vários anos em análise, parar e voltar a tratar-se. A jornalista Malele Penchansky, que publicou em 2009 um livro sobre a histeria cotidiana e a histórica (dir.), diz ter estado em sessões psicológicas (com interrupções) por quase 40 anos. Haja libido narcísica.
Imagens da web
quinta-feira, 8 de julho de 2010
Freud comenta um livro cristão
Num texto de 1921 sobre a psicologia de grupo, Freud comenta que é fácil observar a fuga de um grupo militar, mas bem mais difícil notar o fim de uma religião.
Ilustra o ponto com um romance que especulava sobre a caída do cristianismo: When it was dark (de Guy Thorne, pseudônimo do jornalista inglês Cyril Ranger Gull). O livro é pró-católico e foi até recomendado pelo bispo de Londres quando de sua publicação em 1903. Sem mencionar que o personagem conspirador era um judeu rico, Freud avalia o texto como "um hábil e convincente relato" sobre a dissolução de um grupo religioso.
- O romance [...] conta como uma conspiração de inimigos da pessoa de Cristo e da fé cristã teve êxito em conseguir que um sepulcro fosse descoberto em Jerusalém. Nesse sepulcro encontra-se uma inscrição em que José de Arimateia confessa que, por razões de piedade, retirou secretamente o corpo de Cristo de sua sepultura, no terceiro dia após o sepultamento, e enterrou-o naquele lugar.
A ressurreição de Cristo e sua natureza divina são dessa maneira refutadas e o resultado da descoberta arqueológica é uma convulsão na civilização europeia e um extraordinário aumento em todos os crimes e atos de violência, os quais só cessam quando a conspiração dos falsificadores é revelada
(Psicologia de grupo e a análise do ego, seção V, volume 18 das Obras Completas).
O amor de Cristo, segue Freud, somente valia para os crentes (aqueles com quem há o laço de amor e a mútua identificação do ego). Nisto o psicanalista não desconhece o evangelho, que exige repreender os erros dos irmãos, até estes se corrigirem, ou, caso contrário, ter o pecador como um não cristão. O texto bíblico imediatamente seguinte (ainda em Mateus, capítulo 18) ordena perdoar sempre, mas seria aplicável somente aos irmãos de fé . Por outro lado, Jesus também disse a frase pacifista: "Guardem a espada" (Mateus 26, 52).
A comunidade cristã, "mesmo que se chame a si mesma de religião do amor, tem de ser dura e inclemente para com aqueles que a ela não pertencem". Do mesmo modo - diz Freud neste texto - toda religião tem amor para seus fiéis e crueldade para os alheios a ela.
Em autorreferência indireta - ele que era vítima da intolerância religiosa (inclusive de cristãos) contra o povo judeu - Freud acrescenta que, quanto à crueldade, as pessoas descomprometidas da religião "estão psicologicamente em situação muito melhor" que as pertencentes a uma. Racionalmente, considera que, justamente por os crentes serem (e precisarem ser) tão intolerantes, não devemos ser severos demais ao criticá-los... "por mais difícil que possamos achá-lo pessoalmente" (outra sutil alusão ao que sente ser difícil: deixar de censurar os crentes).
Suas palavras tentam ser cuidadosas, pois ele mesmo era amigo pessoal de católicos e protestantes (mas o distanciamento é difícil, devido ao próprio sofrimento pela perseguição), e sua análise da intolerância parece fria demais, vazia do amor que percebe como falso nas religiões. A citação do livro inglês (figura acima) é uma sutileza sobre a tensão permanente entre judeus e cristãos, mas ele busca desviar o foco de sua situação pessoal.
Atento à política internacional - especialmente ao deslocamento da intolerância desde as religiões para o coletivismo marxista - Freud conclui notando que a violência religiosa havia amainado no século XX, mas não se poderia deduzir "uma suavização nos costumes"; ao contrário, a intolerância poderia até recrudescer.
- A causa [da menor violência] deve ser antes achada no inegável enfraquecimento dos sentimentos religiosos e dos laços libidinais que deles dependem.
Se outro laço grupal tomar o lugar do religioso - e o socialista parece estar obtendo sucesso em conseguir isso - [alusão à Revolução Russa de 1917], haverá então a mesma intolerância para com os profanos que ocorreu na época das Guerras de Religião [violência entre católicos e protestantes franceses, do século XVI], e, se diferenças entre opiniões científicas chegassem um dia a atingir uma significação semelhante para grupos, o mesmo resultado se repetiria com essa nova motivação
(citação do mesmo texto de 1921, com parênteses acrescentados para esta nota).
segunda-feira, 5 de julho de 2010
Freud Cidadão, um programa terapêutico brasileiro
O centro funciona desde 2009 numa casa espaçosa com uma equipe de profissionais. Está cadastrado pelo Ministério da Saúde como clínica de especialidade privada. É o que aqui no sul chamamos de CAPS, um consultório-ambulatório, mas este é uma ONG. Apesar de ser de recente criação, já tem seu reconhecimento, graças a uma boa gestão, com atividades bem publicitadas. O blogue Freud Cidadão informa algumas delas.
O projeto se inspirou na figura do primeiro psicanalista, para ajudar a pessoa necessitada de apoio psíquico, neste caso nao somente os clássicos neuróticos, mas todos aqueles que precisam de boa comunicação e um contexto afetuoso. Enquanto em outros países o nome de Freud se liga somente à corrente psicanalítica, ou ao estudo mais introspectivo, filosófico e até elitista, aqui foi feito o vínculo entre a solene teoria e a prática solidária.
O pessoal do Freud Cidadão está na luta antimanicomial, e em 18 de maio passado participou num desfile com esse motivo.
Em junho, houve um arraial caipira (à esquerda). Apresentou-se o grupo musical Pink Freud, houve danças, exposição de arte e o lançamento de um livro de culinária com receitas "à la Freud Cidadão". Uma poesia foi declamada por Tânia Motta, em homenagem ao projeto: "Freud Cidadão Caipira. Por que não?! " (leia o texto completo).
Abaixo, a fotomontagem com a retrospectiva de 2009, e o fundo de "Bola de meia, bola de gude", com 14 Bis, letra de Fernando Brant e música do também mineiro Milton Nascimento.
Há um menino, há um moleque morando sempre no meu coração.
Toda vez que o adulto balança, ele vem pra me dar a mão.
Há um passado no meu presente, um sol bem quente lá no meu quintal.
Toda vez que a bruxa me assombra, o menino me dá a mão.
E me fala de coisas bonitas que eu acredito, que não deixarão de existir:
Amizade, palavra, respeito, caráter, bondade, alegria e amor.
Pois não posso, não devo, não quero viver como toda essa gente insiste em viver
E não posso aceitar sossegado qualquer sacanagem ser coisa normal.
Bola de meia, bola de gude: o solidário não quer solidão.
Toda vez que a tristeza me alcança, o menino me dá a mão.
Há um menino, há um moleque morando sempre no meu coração.
Toda vez que o adulto fraqueja, ele vem pra me dar a mão.
sexta-feira, 2 de julho de 2010
A metáfora da ameba (ou do tatu-bola)
A metáfora da ameba (à direita) ilustra esse movimento possessivo do ego. Quando este lança seus "braços", está saindo do narcisismo autoerótico e iniciando uma relação com um objeto diferente de si mesmo.
Segundo Freud, o eu psíquico tem uma energia sexual permanente (a libido), e parte dela é transmitida a objetos (amados ou odiados, segundo os investimentos afetivos), "assim como o corpo de uma ameba está relacionado com os pseudópodos que produz" (Sobre o narcisismo: uma introdução, 1914).
Num artigo posterior, ele explica melhor a comparação: o ego é um reservatório, de onde a libido vai em direção aos objetos e para onde retorna, de volta dos objetos. Como ele diz neste texto, a situação pode ser ilustrada por uma ameba, pois seu corpo emite pseudópodes, prolongamentos que se podem retrair a qualquer momento, de modo que a forma da massa protoplásmica seja restaurada. A libido do ego pode converter-se em libido objetal, e esta pode reconverter-se em libido do ego. "Para a completa sanidade, é essencial que a libido não perca essa mobilidade", remarca Freud (Uma dificuldade no caminho da psicanálise, 1917).
A metáfora reaparece na 26ª Conferência de Introdução à Psicanálise. Freud começa dizendo que certos seres unicelulares - em forma de glóbulos - emitem pseudópodes [figura à esquerda], nos quais irrigam sua substância protoplásmica, mas podem também retrai-los e recuperar a forma esférica original.
Diz logo que esses prolongamentos são a afluência de libido em direção aos objetos, enquanto a massa principal de libido permanece no ego. Em circunstâncias normais, essa libido do ego pode transformar-se em libido objetal com relativa facilidade, e inversamente esta pode novamente ser devolvida ao ego ("A teoria da libido e o narcisismo", 1917).
Neste último texto, a explicação serve para entender estados psíquicos tão diversos como o sono, o luto e a melancolia, as paixões amorosas, a demência precoce, as doenças orgânicas, o homossexualismo e a hipocondria. Mas não convém tomar literalmente a comparação com os protozoários, até porque o mesmo Freud reformulará em parte seus conceitos sobre o ego e o id. As amebas terão uma última e breve menção, no cap. 2 de "Esboço de Psicanálise" (1938).
Ainda seguindo o texto ao pé da letra, a analogia sugere duas manifestações contrapostas:
- a libido do ego, situada no corpo (autoerotismo), é como uma bola (um tirano gordo e socialmente insuportável, pois monopoliza o amor), e
- a libido objetal, contida nos membros (desejo amoroso voltado a outros), é a ameba com pés, agarrando as coisas de que gosta.
- dentro da origem (egocentrismo),
- em direção à periferia do ego (buscando amar ou odiar), ou
- de retorno ao ego (retração depressiva, em casos como perdas e separações).
Ficamos admirados com essas mudanças animais, talvez por serem movimentos psíquicos como os que nós mesmos fazemos, de ida e de volta. No narcisismo, não amamos nem odiamos ninguém fora de nós mesmos. No apaixonamento, adoramos com tal facilidade um objeto externo que nosso ego parece ter desaparecido. No desapaixonamento, a retração dói bem mais.
A patologia aparece quando esse vaivém se paralisa. Quando se perde o objeto amado, sobre o qual o ego havia jogado seus braços, a libido investida pode não retornar ao ego. A pessoa se sente podre, como se tivesse "engolido" o objeto morto. Sem retrair os pseudópodes, o ego não consegue reconhecer-se como vivo, pleno, estimável, prazeroso, independente. Segundo outra imagem freudiana, o ego em depressão sente cair sobre ele a sombra do objeto perdido (Luto e melancolia, 1915).
A blogueira Cris Beretta diz que os namorados mais numerosos são como o sapo que finge ser príncipe mas nunca deixará de ser sapo (leia aqui). O mais perigoso é o namorado "tatu-bola" que após um tempo de paixão se transforma num peso inútil, pois deixa de falar e até de mover-se, fazendo a menina se sentir como uma bola que caiu num buraco (leia aqui).
Será este mecanismo narcisista exclusivo dos homens? É preciso tomar cuidado, então, com toda pessoa que aplica ao namoro as regras psicanalíticas de abstinência, neutralidade e regressão narcísica, que só deterioram com mais angústias a relação com o outro. Serve para a análise, mas não para a vinculação amorosa.
terça-feira, 29 de junho de 2010
Espiar na TV e no quarto fechado
Para iniciar 2007, na quarta 14 de março, o psicanalista José Francisco Rotta Pereira palestrou sobre o Big Brother Brasil (BBB-7, na época) e suas implicações psicológicas. Mesmo não sendo um seguidor dessa "novela", ele detectou aí quatro níveis paralelos:
- os programas de TV aberta editados (que censuram nudez e palavrões),
- o programa 24 horas em canal pago (autocensurado pelos edredons),
- o que acontece na casa mas não vai ao ar, e
- o "programa" que nossas mentes imaginam e desejam ver. Sem este roteiro inconsciente, os anteriores não existiriam.
Nossa curiosidade natural por ver o que está oculto - e especialmente o que não tivemos autorização para ver, em nossa infância - dá sentido a atividades culturais como o teatro e o cinema (em seu próprio étimo, a televisão já denuncia nosso voyeurismo: ver à distância). Há quem use binóculos exclusivamente para espiar a vida alheia, o que denota uma necessidade ainda mais específica de observar cenas íntimas.
De acordo à psicanálise freudiana, a cena última que motiva nosso interesse é, invariavelmente, o encontro sexual de nossos pais, o “drama edípico”, isca principal do BBB e das telenovelas em geral (à direita, foto do Big Brother britânico).
José Francisco mencionou também a teoria darwinista. No ambiente natural, os machos brigam pelo poder e as fêmeas buscam o macho mais apto para a reprodução. Os instintos de sobrevivência normalmente estão associados aos instintos eróticos, explicou o psicanalista, mas em situações altamente estressantes - como o enjaulamento ou a vida numa ilha deserta - eles se dissociam e aparecem os comportamentos violentos, as intrigas, a dissolução dos valores civilizados, a regressão aos instintos mais primitivos.
Todos nós temos esses instintos básicos, mas sob alto stress eles podem descontrolar-se. Às vezes, repressões intensas demais podem originar perversões como o fetichismo, a pedofilia, as compulsões, o voyeurismo patológico e outros sintomas. Em outras palavras, se não fosse pela repressão neurótica pareceríamos tarados sem controle (uma colocação freudiana, frisou o palestrante)... e o BBB não poderia ser transmitido na TV aberta.
O assunto é mais complexo do que parece, e ele poderia bem voltar à palestra nestas quartas-feiras pelotenses até 2012 (ano da última edição contratada pela Globo). No entanto, o assunto é de permanente interesse na psicanálise.
Freud fala inicialmente do voyeurismo em 1905, no primeiro dos Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade ("As aberrações"), e fará inúmeras correções a esse texto nos 20 anos seguintes. Se ele vivesse hoje, falaria da TV como um canal de expressão de nossa curiosidade visual e sexual, manifesta ou dissimulada, normal ou desviada.
Sem usar a palavra "voyeurismo", a edição inglesa preferiu escopofilia para referir-se ao "prazer de olhar". A versão espanhola - que também lê do original alemão - traduz como "instinto visual". Todas essas expressões se referem à curiosidade instintiva da criança (não limitada ao sentido da visão), que pode ou não derivar em perversões, posteriormente.
Entre uma enorme variedade de alterações, o voyeurista mais perturbado (forma pura) seria aquele cujo único prazer sexual provém da observação de intimidades alheias, sem que o observado saiba da presença do curioso. Em outros casos, o observador aceita ser visto, ou consegue sentir prazer por formas interativas, ou pode gerar prazer no outro etc.
Indiretamente, Freud alude a sua própria curiosidade visual quando explica o uso do divã. Ele diz que o não olhar-se de frente tem várias vantagens (para ele ausentes na relação cara-a-cara com o paciente):
- Não posso suportar ser encarado fixamente por outras pessoas durante oito horas ou mais por dia
[Na versão espanhola: Não resisto passar oito ou mais horas por dia tendo o olhar de alguém constantemente fixado em mim]. - Visto que, enquanto estou escutando o paciente, também me entrego à corrente de meus pensamentos inconscientes, não desejo que minhas expressões faciais deem [a ele] material para interpretação ou influenciem-no no que me conta
[a ideia não é comunicar-se, mas estimular o narcisismo do paciente]. - Em geral, o paciente encara [a posição do divã] como um incômodo e rebela-se contra ele, especialmente se o instinto de olhar (escopofilia) desempenhar papel importante em sua neurose
[ou seja, se o paciente for mais curioso que o analista].
Insisto nesse procedimento, contudo, pois seu propósito e resultado são
[a] impedir que a transferência se misture às associações do paciente,
[b] isolar a transferência e
[c] permitir-lhe que [essa transferência] apareça, no devido tempo, nitidamente definida como resistência.
Fonte: Sobre o início do tratamento, 1913; transcrito da edição eletrônica das Obras Completas.
[As expressões entre colchetes e itálico foram acrescentadas para esta nota].
Em outras palavras, o psicanalista precisa de uma alta curiosidade e um alto prazer em observar os comportamentos alheios, maiores que o normal das pessoas que gostam de cinema, teatro ou TV. A falta de pudor deve ser tal que ele possa, sem falsos escrúpulos, pesquisar na intimidade sexual dos pacientes, sem mesclá-la com a própria, como se estivesse vendo um escabroso reality show, oito ou mais horas por dia e cada vez mais interessado (talvez por isso muitos psicólogos e psiquiatras não suportem ver um minuto de BBB, que lembra em parte o seu próprio trabalho). Pacientes mais exibicionistas adorarão o método do divã, mas outros (mais escopofílicos) precisarão de um analista mais próximo, tranquilizante e participante.
Imagens da web (foto 4: "Voyeur", Juanjo Fernández)
quinta-feira, 24 de junho de 2010
Psicanalista de pobre
Não se pode desconhecer que o cão recebe as descargas de mau humor do seu dono, seja em forma de pontapés ou de longos e amargos relatos. Ouve pacientemente, dia após dia, sem comentar nem intervir nos relatos, chegando a uma identificação mútua com "o outro" paciente. Pobre ouvinte, diria um observador.
Já que muitos falantes se aliviam pelo falar livremente - sem precisar que o outro entenda - a função catártica fica realizada. Só faltaria a função terapêutica, a verdadeira análise, que custa mais caro (aos ricos). Não esqueçamos que a "terapia pela fala", como ficou batizada a psicanálise em seus começos, não é um simples monólogo.
A piadinha não pertence a Xico Sá, pois Mário Quintana já havia dito algo muito parecido na crônica Para que serve um cachorro?: "Antes de tudo, um cachorro serve para a gente falar sozinho... Que o digam esses vagabundos de estrada, a quem pode faltar tudo, menos um cachorro" (Da preguiça como método de trabalho, p. 228. Globo, 2007).
Freud não foi humorista mas analisou o humor como os humoristas dissecam os defeitos humanos. Conta-se dele que teria usado de fina ironia quando os nazistas lhe fizeram escrever uma declaração de bom trato (leia o relato no blogue de Luiz Zanin).